The Voice+: A trilha sonora do início da vacinação contra a Covid-19 no país

Pesquisador da PUC-Rio, Valmir Moratelli analisa estreia de reality da Globo voltado a talentos com mais de 60 anos


18 de janeiro de 2021 00h18

Alguns do participantes que brilharam na atração. Foto: Montagem

* Por Valmir Moratelli

Foi através de uma interrupção durante a estreia do The Voice +, que os telespectadores da TV Globo souberam da almejada decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em liberar o uso emergencial no país de vacinas contra a Covid-19. Anunciada na tarde deste domingo, 17, a feliz notícia calha coincidentemente com a temática do novo reality. No momento em que a programação realçava os idosos de forma inédita em sua grade, o país pode comemorar uma esperança para frear os números da pandemia. The Voice+ serviu de trilha sonora a esta primeira fase da campanha de vacinação, que será destinada, entre outros, a grupos de risco a partir de 75 anos.

Em outra interrupção do programa, assistiu-se à aplicação da primeira dose da vacina no país. A enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, fez história ao se tornar a primeira pessoa, fora de estudos clínicos, a receber a vacina. Um feito ansiado por todo o país, que sofre há 10 meses com a desassistência das autoridades federais perante uma das maiores taxas de mortalidade da doença no mundo. O presidente Jair Bolsonaro, no começo da pandemia, chegou a definir o vírus como uma “gripezinha e que só mata idosos e pessoas com condições preexistentes”. 

Neste atual contexto político, é bastante louvável a ideia de se fazer uma versão do reality musical com participantes idosos. Seguindo a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que agrupa como idoso o indivíduo a partir de 60 anos, a TV Globo propôs competição nos mesmos moldes da que já realizara com crianças e adultos. Na etapa da audição às cegas, quatro técnicos (Claudia Leitte, Daniel, Ludmilla e Mumuzinho) avaliam as vozes e, caso se interessem, viram as cadeiras para possíveis pupilos.

Tirando a feliz coincidência da estreia, há ressalvas a se pontuar. De toda a trupe, Daniel, com 52 anos, é o que mais se aproxima do que se classifica de idoso. Claudia, com 40, Mumuzinho, 37, e Ludmilla, 25, estão ainda distantes da meta. Completam o time o apresentador André Marques, com 41, e a escritora juvenil Thalita Rebouças, de 46, como repórter de bastidor. Selecionar apenas uma equipe adulta para avaliar os idosos é o ponto fraco da atração. Por que não incluir técnicos sêniores? Nossa música tem uma vasta opção de sábios talentos. Bola fora!

Foto: Globo/João Miguel Júnior

Também causou estranheza, por exemplo, a tentativa de elogio de Daniel a um participante: “Você não é velho não, é jovem!”. Na verdade, essa é apenas a reprodução de um preconceito velado que existe em relação a gerações mais velhas, o idadismo. Insinuar que ser velho é ruim, e que para elogiar alguém é preciso ressaltar sua possível juventude, é uma forma de caracterizar o preconceito pouco discutido no país. Não, ser velho não é ofensa. Em outro momento, uma participante conserta o estreante Mumuzinho: “Pode tirar o ‘senhora’ (da sua fala)”. Saber lidar com a velhice escancarada no palco vai ser um atrativo a mais do The Voice+. A competição tende a jogar holofote nos técnicos, antes sustentados em clichês como “você cantou com emoção”, “estou arrepiada” etc. 

Segundo o IBGE, já somos um país com cerca de 19 milhões de idosos – parcela importante da audiência da TV aberta. Só isso já ampara a ideia do programa. Destaca-se também a diversidade dos competidores, seja em cor, gênero ou origem. É essa pluralidade da velhice brasileira que revigora a fórmula do reality. Além de colocar o idoso no centro de uma atração televisiva – muitas vezes tido no país como inválido ou sem perspectivas futuras –, The Voice+ abre inédito cenário para discussão de como se vê e se trata este grupo social. Mais do que entretenimento, The Voice+ desnuda assunto sério e serve de reflexão para mudanças que as autoridades cismam ignorar.

* Valmir Moratelli é jornalista, roteirista e doutorando da PUC-Rio, onde pesquisa a velhice no país.