As vitórias de Marcella Maia na vida e na arte: Atriz e cantora arrebata como a Morte em trama das 7

Na melhor fase, ela diz o que faria com um poder sobrenatural e lembra como a transição de gênero a tornou mais “poderosa”


10 de janeiro de 2022 02h20

Foto: Globo/João Miguel Júnior

Por Luciana Marques

A entrevista completa está disponível no vídeo, abaixo.

Atriz, cantora, compositora e modelo, Marcella Maia, de 30 anos, mais conhecida como A Maia, assegura viver o seu melhor momento. Além da carreira musical, em que suas canções são escutadas em mais de 63 países, e após participações no longa internacional Mulher Maravilha, na peça Roda Viva, de Chico Buarque, e na série Todx Nós, da HBO, ela faz a estreia na TV, em Quanto Mais Vida, Melhor! E a personagem é poderosa: a Morte. Será ela que apontará qual protagonista morrerá no fim da trama.

O fato das gravações ocorrerem num momento difícil de pandemia e Marcella ser uma mulher trans, num país em que ocorrem mais mortes de transexuais, o desafio para compor o papel foi maior. “Precisei de três terapeutas, dei uma surtada no processo”, conta. Indagada sobre o que faria se, assim como a personagem, tivesse poderes sobrenaturais, A Maia tem a resposta na ponta da língua. “Pegaria essa galera preconceituosa, racista, xenofóbica, machista e colocaria elas em vivências pretas, trans, para entenderem essa força e como é difícil”.

No bate-papo, Marcella, natural de Juiz de Fora, MG, que teve uma infância humilde e difícil, lembra como iniciou a paixão pelas artes. E aconselha aos jovens que se sentem diferentes a não terem medo. “Seja quem você é, acredite em você”. Entre outras novidades, A Maia anuncia que o próximo single é um feat com a cantora luso-brasileira Blaya Rodrigues. “Canto para empoderar outras mulheres, pessoas, o meu som é bem para cima, para dançar”.

Foto: Globo/João Miguel Júnior

Quando você foi chamada para o papel, o que disseram que foi essencial para você ser escolhida para fazer a Morte? Eu já venho trilhando uma estrada que começou lá atrás na moda e se desconstruiu no teatro. Eu digo que o teatro me fez atriz, foi quando entendi a força da minha arte, do meu corpo. A partir disso, ainda estudando e me formando, eu sou atriz de formação, começaram a surgir os trabalhos. Veio Roda Viva, em seguida um protagonismo na peça da Yara Novaes. E a gente vai movimentando o nosso trabalho e as pessoas vão conhecendo, os produtores de elenco e diretores já me seguiam. Eu já tinha feito outros testes na casa, quase entrei em A Dona do Pedaço, mas eu acho que Deus escreve certo, as coisas acontecem quando tem que acontecer. E não poderia ser diferente, esse papel foi feito pra mim. E eu fiquei muito feliz, não esperava, tinha acabado de me mudar para Portugal. E aí quando recebi a notícia, fiz as malas e está sendo incrível tudo o que está acontecendo na minha vida e carreira, acho que estou no melhor momento.

Quando disseram para você que a personagem era a Morte, o que passou pela sua cabeça, porque a gente sabe que o Brasil é um dos países recordistas em mortes de pessoas trans, LGBTQIA+? Foi difícil. Dei uma surtada no processo, porque tive que me desligar das notícias para poder trazer humor. Eu literalmente dancei com a morte nos meus laboratórios. Além da preparação que a gente tem, eu sou virginiana com ascendente em gêmeos, então eu sempre me aprofundo em cada trabalho. Só que fazer a Morte num contexto pandêmico mundial, onde ela se torna popular e vira a audiência quando aparece, foi um alívio. Tinha a insegurança, por ser uma obra fechada. Foi um processo muito intimista também, solitário, porque trabalhamos com muitos protocolos e o importante na atuação é a troca, o toque, e não teve muito isso, foram vários atravessamentos. Apesar de tudo, é o trabalho do ator, que é visceral, a gente passa por várias camadas até entender a personagem, até ela estar no seu corpo e a atuação se tornar uma diversão.

 

Como você buscou inspiração para a Morte, a gente vê que a direção buscou um tom de universo fantástico, mostra ela sempre poderosa, maior... Eu sou uma mulher bonita e tocando lá no lugar desse recorte de ser uma mulher trans, o meu medo era do bullying, da chacota, por ser a Morte. Outro dia eu fui no Brás, em São Paulo, e as pessoas me pediam para tirar foto e se escondiam, é ela, é ela, achei muito divertido. E foi muito rico passar por isso, porque é um personagem que não é humano, é sobrenatural, muito subjetivo, então ela pode ser muitas coisas. E chegar assim, na jaula dos leões, com atores experientes e consagrados e ver a generosidade de todos comigo... Além do fato de eu estar nua e eu tenho fotofobia, só 40 por cento da visão, então meu olho é muito sensível à luz. E nunca tinha trabalhado num projeto com uma produção tão grande, com tanta luz. Mas eu amo muito o que faço, no primeiro teste estava nua, com 50 pessoas em volta. Achei que não ia conseguir, mas o fato de estar nua não era um detalhe, porque entrei logo nesse lugar de fera, de frisson, claro que bruta, mas foi lapidado conforme a gente foi construindo o personagem e é sucesso.

E como é ser tão poderosa, podendo decidir o destino dos personagens de atores tão consagrados (Giovanna Antonelli, Vladimir Brichta, Mateus Solano e Valentina Herszage)? Ah, incrível! Eu sempre fui uma criança, adolescente, reprimida, sem amigos, muito nerd. Minha mãe é professora, hoje ela é psicopedagoga e trabalha com pessoas trans. Então, eu sempre tive uma educação muito rígida, humilde, mas muito rígida. O medo da minha mãe era, ah, não quero ter uma filha marginal. Porque a periferia toda falava, ah, essa menina é muito solta, diferente, e aí todo aquele atravessamento de não ser lida enquanto menina e me entender sempre, desde que eu nasci enquanto mulher. E eu acho que esse empoderamento veio quando eu decidi ir para a Tailândia e disse, eu quero renascer. É sobre segunda chance, todo o dia é um dia para a gente reconstruir a nossa história. E eu entendi que a gente pode tudo. É só a gente focar e trabalhar para aquelas coisas, talvez não seja na hora que a gente quer, mas acontece. Eu acredito muito nessa lei da atração, porque é o que eu busco na minha vida junto com o estudo. E já faz 11 anos que eu me transicionei. E desde a minha transição, eu já me considerava, veio esse poder. Então eu sempre fui uma mulher poderosa e esse lugar para mim é muito cômodo. Eu fui modelo, trabalhei com desfiles de moda, foi difícil desconstruir a beleza, eu apanhei muito no teatro, porque trabalhava há anos para desfiles, muito com o “carão”. E na atuação é diferente, se você só tem o “carão”, não consegue a empatia do público. É muito mais interno, no olhar, um trabalho que vem de dentro.

A Morte (Marcel?la Maia). ??????Foto: Globo/Paulo Belote

A novela tem três atrizes trans. Acha que está aumentando esse espaço? Como você vê isso da representatividade? No meu caso, que fui escalada e o meu papel passou por Fernanda Montenegro, Patrícia Pillar, não tem nada a ver com o meu gênero, o que é ótimo. Porque se alguém chega para mim falando, ai, eu quero uma trans, eu já corto. Vejo hoje muita gente, marca, usando desse lugar para se isentar da sua parcela de responsabilidade enquanto sociedade. Se a gente está onde está hoje, é graças ao entretenimento, que veio marginalizando e colocando esses corpos como se fossem um estado de comédia. No carnaval, todo o mundo pode colocar uma peruca. E não é isso. Eu não sou um personagem, eu sou uma mulher, isso não deveria ser discutido, não deveria ser pauta para trabalho. Só que agora a gente tem espaço, a gente não está mais calada, a gente não chega mais de cabeça baixa nos lugares, porque a gente entende a nossa força. E eu acho que essa força vai muito de quebrar esse lugar desse país machista. É foda ser mulher no Brasil para qualquer tipo, gênero. É difícil estar à frente, tocar projetos, se propor, porque você é sempre vista nesse lugar da arrogância, quem ela pensa que é. Mas não, todos somos capazes de sermos diretores da nossa história.

Foto: Globo/João Miguel Júnior

Quando você descobriu a sua paixão pela arte? Foi muito cedo. Quando a minha mãe fugiu dos abusos do meu pai, ela foi para Brasília. E dois anos depois de eu sofrer esse abandono, ela voltou para me buscar. Era só eu, ela e o meu padrasto, que considero meu pai. A gente morava em Valparaíso 2, um setor de chácaras, difícil até encontrar no mapa. Eu lembro que ela estava grávida, só tinha eu, meu pai e a gente estava construindo a casa. E num domingo a gente foi no shopping, era uma programação normal da família. E teve um concurso. Eu lembro da minha avó, que faleceu enquanto eu gravava a novela e agora está assistindo de camarote, falar, vai lá, que você consegue. Eu comecei a dançar e ganhei. A minha avó do outro lado fazia a mímica e eu seguia ela. Ganhei um curso, publicidade, só que tinha que ir todos os dias. Mas eu precisava cuidar da minha mãe que estava grávida e tive que renunciar aquela vontade que vinha desde sempre, essa veia artística. E isso veio comigo, a responsabilidade de trabalhar cedo para ajudar em casa. Agora minha mãe tem uma vida de rainha, cinco faculdades, o que me deixa tranquila, posso viajar o mundo, conquistar outros territórios. Hoje eu considero essa adolescente lá de atrás, que queria realizar os sonhos, que lutou e trabalhou muito que nem uma égua nos últimos 10 anos, realizada.

Se você tivesse um poder como a Morte tem, num momento tão difícil para o mundo e o Brasil, o que faria? Eu acho que eu trocaria as pessoas de corpos, de vivências, para elas sentirem na pele como é difícil. Como elas tornam mais difíceis a vivência de outras pessoas nessa filosofia retrógrada, antiga, de que as coisas têm que ser de uma forma só e pronto. E não é assim. A partir desse pensamento quadrado, a gente discrimina outras vivências, achando que somos melhores que os outros e não. Todos somos plurais, ninguém é igual a ninguém. E eu acho que eu pegaria um grupo, não dá para generalizar porque tem muita gente boa no mundo, pegaria essa galera preconceituosa, racista, xenofóbica, machista e ia colocar elas em vivências pretas, trans, para elas entenderem o que é essa força. E se às vezes a gente precisa se posicionar de uma forma dura é porque essa construção é social. Eu falo muito de amor, eu acredito muito num mundo com amor e empatia. Eu trabalhei nas ruas, vendia doce nas ruas, então eu conheço a crueldade do mundo, as pessoas podem ser muito cruéis.

Capa de recente single da cantora. Foto: Reprodução

Que conselho você daria a um jovem que se sente diferente e passa pelo o que você passou? Meu amor, seja diferente, não tenha medo de ser quem você é, porque sendo quem você é, você vai conquistar o mundo. É sobre isso, acredite em você, porque a única coisa que te impede é a sua própria mente. E não leve desaforo para casa, é uma coisa que a minha mãe me ensinou e eu levo pra vida.